RESENHA: O
NARCISISMO
Fonte: Elisabeth Roudinesco; Michel Plon. DICIONÁRIO
DE PSICANÁLISE. TRADUÇÃO: Vera Ribeiro ( psicanalista
)e Lucy Magalhães ( letras neolatinas ). Editora ZAHAR, 1998.
al. Narzissmus; esp. narcisismo;
fr. narcissisme; ing. Narcissism
Termo empregado pela primeira vez em
1887, pelo psicólogo francês Alfred Binet (1857-1911), para descrever uma forma
de fetichismo* que consiste em se tomar a própria pessoa como objeto sexual.
O termo foi depois utilizado por
Havelock Ellis*, em1898, para designar um comportamento perverso relacionado
com o mito de Narciso. Em 1899, em seu comentário sobre o artigo de Ellis, o
criminologista Paul Näcke (1851-1913) introduziu o termo em alemão.
Na tradição grega, o termo narcisismo
designa o amor de um indivíduo por si mesmo. A lenda e o personagem de Narciso
foram celebrizados por Ovídio na terceira parte de suas Metamorfoses.
Filho do deus Céfiso, protetor do rio
do mesmo nome, e da ninfa Liríope, Narciso era de uma beleza ímpar. Atraiu o
desejo de mais de uma ninfa, dentre elas Eco, a quem repeliu.
Desesperada, esta adoeceu e implorou à
deusa Nêmesis que a vingasse. Durante uma caçada, o rapaz fez uma pausa junto a
uma fonte de águas claras: fascinado por seu reflexo, supôs estar vendo um
outro ser e, paralisado, não mais conseguiu desviar os olhos daquele rosto que era
o seu. Apaixonado por si mesmo, Narciso mergulhou os braços na água para
abraçar aquela imagem que não parava de se esquivar. Torturado por esse desejo
impossível, chorou e acabou por perceber que ele mesmo era o objeto de seu
amor. Quis então separar-se de sua própria pessoa e se feriu até sangrar, antes
de se despedir do espelho fatal e expirar. Em sinal de luto, suas irmãs, as
Náiades e as Díades, cortaram os cabelos. Quando quiseram instalar o corpo de
Narciso numa pira, constataram que havia se transformado numa flor.
Até o fim do século XIX, o termo
narcisismo foi utilizado pelos sexólogos para designar seletivamente uma
perversão sexual caracterizada pelo amor dedicado pelo sujeito* a si mesmo.
Em 1908, Isidor Sadger* falou do
narcisismo, a propósito do amor próprio, como uma modalidade de escolha de
objeto* nos homossexuais; distinguiu-se de Havelock Ellis ao considerar o
narcisismo não como uma perversão*, mas como um estádio normal da evolução psicossexual
do ser humano.
O termo narcisismo surgiu pela primeira
vez na pena de Freud numa nota acrescentada em 1910 aos Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade*.
Falando dos “invertidos” e, portanto, ainda
não utilizando a palavra “homossexual”,
Freud escreveu
que eles “tomam a si mesmos como objetos sexuais” e, “partindo do narcisismo, procuram
rapazes semelhantes à sua própria pessoa, a quem querem amar tal como sua mãe
os amou”.
Em 1910, em seu ensaio “Leonardo da
Vinci e uma lembrança de sua infância” (1910), e em 1911, no estudo que fez
sobre o caso Schreber*, Freud, a exemplo de Sadger, considerou o narcisismo um
estádio* normal da evolução sexual.
Foi em 1914, em “Sobre o narcisismo:
uma introdução”, que o termo adquiriu o valor de um conceito. Fenômeno
libidinal, o narcisismo passou então a ocupar um lugar essencial na teoria do
desenvolvimento sexual do ser humano.
A elaboração desse texto apoiou-se no
estudo das psicoses* e, principalmente, na contribuição da Karl Abraham*. Sem
utilizar essa palavra, o berlinense, num texto de 1908 que versava sobre a
demência precoce, havia descrito o processo de desinvestimento do objeto e convergência
da libido* para o sujeito: “O doente mental dedica a si mesmo, como objeto sexual
único, toda a libido que o homem normal volta para o meio vivo ou animado. A
superestimação sexual diz respeito tão somente a ele.”
Freud adotaria essa definição da
psicose na vigésima sexta lição das Conferências introdutórias sobre
psicanálise*.
No texto de 1914, a observação do
delírio de grandeza no psicótico levou Freud a definir o narcisismo como a
atitude resultante da transposição, para o eu* do sujeito*, dos investimentos libidinais
antes feitos nos objetos do mundo externo. Freud observou então que esse
movimento de retirada só pode produzir-se num segundo tempo, este precedido de
um investimento dos objetos externos por uma libido proveniente do eu. Assim,
podemos falar de um narcisismo primário, infantil, que a observação das
crianças, bem como a dos “povos primitivos”, ambos caracterizados por sua
crença na magia das palavras e na onipotência do pensamento, viria confirmar. O
narcisismo primário diria respeito à criança e à escolha que ela faz de sua
pessoa como objeto de amor, numa etapa
precedente à
plena capacidade de se voltar para objetos externos.
Assim, Freud é levado, no que constitui
um dos pontos fortes desse texto, a considerar a existência permanente e
simultânea de uma oposição entre a libido do eu e a libido do objeto, e a
formular a hipótese de um movimento de gangorra entre as duas, de tal sorte
que, se uma enriquece, a outra empobrece, e vice-versa.
Nessa perspectiva, a libido de objeto,
em seu desenvolvimento máximo, caracteriza o estado amoroso, ao passo que,
inversamente, em sua expansão máxima, a libido do eu fundamenta a fantasia* do
fim do mundo no paranoico.
O desenvolvimento teórico constituído
por esse texto implicou uma primeira reformulação da teoria das pulsões*,
desaparecendo a separação entre pulsões do eu e pulsões sexuais e sendo o eu
definido como “um grande reservatório de libido”.
Antes desse avanço teórico, porém,
Freud deparou com um obstáculo a propósito do narcisismo primário no momento de
definir a relação deste com o auto-erotismo que fora identificado nos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade. Assim, postulou um desenvolvimento do
eu em dois tempos, com “uma nova ação psíquica” seguindo-se ao auto-erotismo, para
que fosse possível atingir o estádio do narcisismo primário. Quando queremos
estabelecer uma correspondência entre esse desenvolvimento e a evolução
pulsional, a passagem das pulsões sexuais parciais para sua unificação, somos
levados a considerar que o narcisismo infantil ou primário é contemporâneo da
constituição do eu.
Como se pode
constatar, e o próprio Freud o reconheceu, a questão da localização do
narcisismo primário levanta inúmeras dificuldades.
Ele
é, segundo Freud, mais difícil de observar que de deduzir. Todavia, a título de
observação indireta, Freud destacou a admiração parental por “his majesty
the baby” como sendo a manifestação, nos pais, de seu próprio narcisismo
primário abandonado, em cujo lugar constituiu-se progressivamente seu ideal do
eu.
“O amor dos pais”, escreveu Freud, “tão
tocante e, no fundo, tão infantil, não é outra coisa senão seu narcisismo
renascido, que, a despeito de sua metamorfose em amor de objeto, manifesta
inequivocamente sua antiga natureza.”
No contexto da elaboração da segunda
tópica*, Freud retornou a essa questão da localização do narcisismo primário,
que foi então situado como o primeiro estado da vida — anterior, portanto, à
constituição do eu —, característico de um período em que o eu e o isso* são indiferenciados,
e cuja representação concreta poderíamos conceber, por conseguinte, sob a forma
da vida intrauterina. Como assinalam Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis,
essa nova formulação teve por conseqüência apagar qualquer distinção entre o
auto-erotismo o narcisismo, e “é difícil discernir, do ponto de vista tópico, o
que é investido no narcisismo primário entendido dessa maneira”.
A definição do narcisismo secundário é
menos problemática e a formulação da segunda tópica não modifica sua concepção,
muito embora, a partir da redação de Mais-além do princípio de prazer*,
Freud viesse a abandonar cada vez mais esse conceito, cuja ausência convém assinalarmos
no Esboço de psicanálise*. O narcisismo secundário ou narcisismo do eu,
portanto, no início da década de 1920, mantém-se como o resultado, manifesto na
clínica da psicose, da retirada da libido de todos os objetos externos. Mas o
narcisismo secundário não se limita a esses casos extremos, uma vez que o investimento
libidinal do eu coexiste, em todo ser humano, com os investimentos objetais, havendo
Freud postulado a existência de um processo de equilíbrio energético entre as
duas formas de investimento que participam de Eros, a pulsão de vida, e de seu
combate contra as pulsões de morte. Por outro lado, e isso atesta o caráter
incontornável que teve esse conceito na evolução da teoria freudiana do
desenvolvimento psíquico, o narcisismo constitui, desde o texto de 1914, o
primeiro esboço do que viria a se transformar no ideal do eu*.
A despeito de suas insuficiências e de
seu estatuto ambíguo, o conceito de narcisismo serviu de ponto de partida para
inúmeras elaborações pós-freudianas.
Efetuando uma análise espectral do
conceito de narcisismo, André Green, em 1976, fez o recenseamento do “destino
do narcisismo” depois de Freud, sublinhando que os psicanalistas “dividiram-se
em dois campos conforme sua posição a respeito da autonomia do narcisismo”.
Em nome da defesa dessa autonomia, convém
assinalar a contribuição do psicanalista francês Bela Grunberger, que concebeu
o narcisismo como uma instância psíquica da mesma ordem que as instâncias
freudianas da segunda tópica, e a do psicanalista norte-americano Heinz Kohut*,
que, a partir da clínica dos distúrbios narcísicos, contribuiu para o
desenvolvimento da corrente da Self Psychology*. Em contraste com essas
concepções, Melanie Klein*, postulando a existência primária de relações de
objeto, foi levada a rejeitar tanto a idéia de narcisismo primário quanto a de
estádio narcísico, falando tão somente em estados narcísicos ligados a retornos
da libido para objetos internalizados.
Foi sobre o ponto até hoje confuso da
localização do narcisismo primário e de sua relação com a constituição do eu
que se fundamentou a concepção lacaniana do estádio do espelho*, desenvolvida
em 1949. Para Jacques Lacan*, o narcisismo originário constitui-se no momento em
que a criança capta sua imagem no espelho, imagem esta que, por sua vez, é
baseada na do outro, mais particularmente da mãe, constitutiva do eu. O período
de auto-erotismo, portanto, corresponde à fase da primeira infância, período
das pulsões parciais e do “corpo despedaçado”, marcado por aquele “desamparo originário”
do bebê humano cujo retorno sempre possível constitui uma ameaça, a qual se encontra
na base da agressividade.
Articulada com a teoria lacaniana, que
reconhece a existência do narcisismo primário antes mesmo do estádio do
espelho, a reflexão de Françoise Dolto* situou as raízes do narcisismo no
momento da experiência privilegiada que é constituída pelas palavras maternas,
mais centradas na satisfação de desejos do que no atendimento de necessidades.
Esta abordagem é interessante, pois os
autores fazem um levantamento da tradição grega, e verificam que o termo
narcisismo designa o amor de um indivíduo por si mesmo.
É enfatizado que no fim do século XIX,
o termo narcisismo foi utilizado pelos sexólogos para designar seletivamente uma
perversão sexual caracterizada pelo amor a si mesmo. Mas Em 1908 Isidor Sadger
não concordava com esses argumentos, pois acreditava que o narcisismo era um
estágio normal da evolução psicossexual do ser humano.
Outra abordagem muito interessante é a
comparação dos homossexuais com os “invertidos”, haja vista que de acordo com Freud
eles “tomam a si mesmos como objetos sexuais” e, “partindo do narcisismo, procuram
rapazes semelhantes à sua própria pessoa, a quem querem amar tal como sua mãe
os amou”.
Freud definiu o narcisismo, em outras
palavras, como o resultado da transferência dos investimentos libidinais para o
“EU” próprio, antes voltados para o outro. O comentarista afirma que ele deparou com um
obstáculo a propósito do narcisismo primário no momento de definir a relação deste
com o auto-erotismo que fora identificado nos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade. Assim, é considerado que o narcisismo infantil ou primário
está diretamente relacionado com a formação do EU.
Já que há uma dificuldade de separação
da formação do EU com a instalação do narcisismo infantil ou primário podemos
concluir que o narcisismo atual seria um regresso ao amor dos pais, isto é,
amar ao outro como quem está de fato recebendo o amor dos pais... na realidade
é um amor próprio, voltado para si como quem repete o amor outrora recebido.
Freud considerou posteriormente que o narcisismo infantil se instalou antes da
constituição do EU criando assim a
diferença entre narcisismo e auto-erotismo.
No narcisismo secundário, cuja
problemática é menor, o EU está fortalecido e o amor aos objetos esternos está
reduzido e não aniquilado. Dessa forma, percebe-se que o narcisismo é o
primeiro esboço do que viria a se transformar no ideal do eu e a pulsão de vida
continua coexistindo em combate a pulsão de morte.
Reginaldo
Silva de Lyra
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